segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Verbum - Experiência: a Escola da Ponte

Vou contar um caso de amor. Amor à primeira vista. Eu me apaixonei pela Escola da Ponte. Bastou vê-la para que um passado reverberasse dentro de mim.
Não tenho memórias dolorosas do grupo escolar. As coisas a serem aprendidas eram fáceis e eu as aprendia sem esforço. Mas minha eferves- cência intelectual – pois as crianças também têm efervescências intelec- tuais – estava em outro lugar: no mundo que começava quando eu saía da escola. Eu me levantava às 5h e me punha a andar pela casa fazendo barulho. Queria que os adultos dorminhocos despertassem do seu sono para o mundo maravilhoso que aparecia com a luz do dia. Minha curiosidade me levou a desmontar o relógio de pulso de minha mãe, o único que ela tinha. Queria saber como ele funcionava, aquelas engrenagens fascinantes. Infelizmente, não consegui montá-lo de novo.
No grupo escolar, nos ensinavam o que o programa mandava: o nome de serras, Serra da Mata da Corda, do Espinhaço, da Bocaina; o nome de afluentes de rios distantes, dos quais a única coisa que aprendíamos eram... os nomes. O que me foi útil no exame de admissão, porque me perguntaram o nome da segunda maior ilha fluvial do mundo. Tupinambarana. Eu sabia o nome. Mas ainda hoje, nada sei sobre a ilha.
Era tempo da Segunda Guerra Mundial. As batalhas entravam em nossa casa pelo rádio: “E Stalingrado continua a resistir”; “Aviões aliados martelaram as posições nazistas no Vale do Pó”. Meu pai afixou um mapa da Europa na parede e nele íamos seguindo os movimentos das tropas. A imaginação corria rapidamente e eu me sentia como um soldado na frente de batalha. O mapa, os países, o nome das cidades, dos rios, das montanhas –– tudo estava vivo para mim.

Conto essas coisas da minha vida de menino para dizer que as crianças são curiosas naturalmente e têm o desejo de aprender. O seu inte- resse natural desaparece quando, nas escolas, a sua curiosidade é sufocada pelos programas impostos pela burocracia governamental. Pela minha vida tenho estado à procura da escola que daria asas à curiosidade do menino que fui. Pois, de repente, sem que eu esperasse, eu me encontrei com a escola dos meus sonhos. E me apaixonei.
 
Novas formas de ver
Tudo começou em 2000, via internet. Comecei a receber e-mails de um desconhecido de Portugal, Ademar Ferreira dos Santos. Uma brasileira lhe havia dado um livrinho meu, Estórias de Quem Gosta de Ensinar. Ele gostou. Sem nos conhecermos pessoalmente, nos descobrimos amigos. Ele me convidou para ir a Portugal e falar aos professores da Universidade de Braga e a adolescentes de uma escola secundária.
Fui e fiz. Foi bom. Aí, numa manhã, ele me disse: “Vou levar-te a conhecer uma escola diferente”. “Diferente como?”, perguntei. “Não é pos- sível dizer-te. Tu verás.” Chegamos à escola. Na sua frente havia um pátio arborizado. Lá estava o diretor, professor José Pacheco. Aprendi que ele se recusa a ser chamado de diretor, por razões que explicarei mais tarde.
Minha expectativa era que o diretor, por um mínimo dever de corte- sia, haveria de levar-me a conhecer a escola. Homem de poucas palavras, trocamos meia dúzia de banalidades. Vinha passando à nossa frente uma menina de uns nove anos. Ele a chamou e disse: “Tu podes mostrar e expli- car a nossa escola ao nosso visitante?”. “Pois, pois”, respondeu a menina, sem mostrar nenhuma surpresa. Ato contínuo, ele me abandonou e fiquei eu à mercê da menina. 

Rubem Alves, trecho do livro O Desejo de Ensinar e a Arte de Aprender
Em breve a parte 2 - Os primeiros sustos

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